A História de uma noite
Eu me esticava em minha rede admirando o céu, antes de tudo acontecer.
O grande clichê da garota apaixonada pelo céu.
Estava perdida, distraidíssima por aquela grandiosidade, e foi aproveitando esse longo
alheamento que algum deles veio mansamente por minhas costas e me encapuzou.
Pensei em algumas possíveis atitudes, mas não agi.
Sem resistir fui levada para um automóvel - que não pude reconhecer - e lá dentro perdi
o movimento das mãos, que foram amarradas juntas por meus pulsos, e dos pés,
que foram amarrados pelos meus tornozelos, e de todo o resto,
quando amarraram os pulsos aos tornozelos com outra corda.
O único grande incômodo foi a aflição que aquele capuz me causava, quando ao inspirar,
grudava em meu rosto, dificultando ainda mais a passagem do oxigênio.
E em volta do meu nariz e da minha boca, se amontoava um calor, que na expiração
descia pelas brechinhas do capuz, até meu pescoço, me fazendo quase cócegas.
O automóvel chacoalhava muito. Eu me preocupava mais em não cair do banco,
do que em perguntar algo, ou em gritar, ou em pensar em um plano de fuga.
Parecia-me um castigo que eu já esperava, mas eu não esperava
e ainda não sabia se poderia chamar de castigo.
Um sequestro, rapto, assassinato, eram possibilidades remotas,
e se fosse o caso qualquer um desses, eu me sentia pronta.
Supostamente pronta para enfrentar o que me esperasse.
O automóvel parou e me deixou perceber que estávamos em algum local isolado,
longe de qualquer ruído que não fosse provocado pela natureza.
Mãos me desamarram e caminharam comigo por alguns metros,
e depois pude ouvir por breves segundos seus passos se afastando de mim.
Esperei até não ouví-los mais e tirei o capuz. Até então não havia percebido que estava nua,
nem lembrava o momento em que minhas roupas foram extraídas de mim.
Ao meu redor apenas mato. Estava no topo de uma colina que brilhava à luz da lua.
Para todos os lados só o verde da grama embaralhado com poucas flores e troncos de árvores isoladas. Não vi nenhum animal, e como esperado, nenhum sinal de vida humana.
Novamente quis agir. Pensei em me desesperar, mas não o fiz.
Em gritar, correr, mas também não o fiz. Em vez disso sentei minha bunda pelada
na grama e esperei por qualquer acontecimento que quisesse acontecer.
O céu que me cobria, estava ainda mais zangado do que antes,
quando o cantava em minha rede.
Bem do jeito que gosto: Nuvens grandes, gordas, cinzas e densas, apostando corrida entre si.
Por trás um azul quase preto, e pontinhos brilhantes disputando por um espaço na vitrine.
Uma salada de beleza e imensidão. Por minutos - ou horas -, fiquei sentada observando.
Lembrei-me por fim de outras vezes em que observara o céu.
Em nenhuma outra estive tão conectada.
Estava assustada, mas a inutilidade e a indisposição para uma tomar uma atitude,
somados com a beleza hipnotizante do lugar, do momento, me faziam quase estática.
A única ação que consegui completar foi me deitar - talvez por cansaço,
talvez por uma vista melhor.
Deitada as folhas lambiam as pontas dos meus vinte dedos e depois engoliam meus braços,
minhas pernas, avançavam por meus ombros e coxas, e dominavam meu corpo,
e me umedeciam onde a transpiração ainda não conseguia chegar.
Eu em meio ao nada. Arrepiando da lombar à cervical.
Pensamentos me inundaram, e lembranças me invadiram.
Perdi o controle da minha mente e os sentimentos se confundiam em mim.
Dores começaram a emergir de minhas profundezas.
Ardores que fui guardando durante minha vida, meus medos, minhas tristezas.
Sofrimentos que não expressei e foram se acumulando em alguma parte sombria de mim.
Tudo resolveu vir à tona.
Experimentei uma nova sensação: Nostalgia e angustia juntas.
Sentia dor em cada molécula. Sofri até me desanexar da minha carne.
Vi-me então, por um novo ângulo. Calada na grama, pingando,
cada segundo mais atrofiada que o anterior.
Eu era um feto de um planeta todo.
Extasiada, apavorada, triste. E tudo era demasiado belo, portento, eterno.
Reparei um brilho maior nos olhos deitados.
Eram lágrimas que vinham se juntar aos outros líquidos que me molhavam,
e vieram muitas em um choro agoniado e tempestuoso.
Comecei a sentir meu vulto - que flutuava - cansado,
e bruscamente fui reintroduzida no cadáver ao peso de uma gota que escorregou
na minha nuca, mas que não era uma lágrima minha, era uma do céu.
Outra caiu no meu ombro, e outra no meu joelho. E depois dessas, várias me encharcaram.
Uma chuva devastadora completava o espetáculo.
Nunca estive tão molhada, nua e imensa.
Nunca fui tão bombardeada de emoções, sensações e líquidos.
Um esplendor volumoso que esmagou meus pêlos, poros, pele, carne, ossos e órgãos.
Uma venustidade única e universal. E doía, e era lindo.
Apertei meus olhos testando a realidade, encravei minhas unhas na terra.
Sentindo a excitação e o fervor abri meu corpo, deixei o mundo me ter e adormeci.
Acordei com o nascer do sol e estava novamente em minha rede.
Não sei como fui parar lá, nem como, nem quando. Poderia ter incriminado como um sonho, mas estava ainda nua, suja de terra e cheirando à chuva.
Jamais entenderei como tudo aconteceu. Mas não importa,
porque toda noite que namoro o céu, é impossível não abraçar as lembranças
da noite em que conversei intimamente com minha alma.